Ponte do Zacharias

As rotas de ligação da bacia do Rio Preto com a Corte

A Ponte do Zacharias

Introdução

Na primeira metade do século XIX o ciclo de café no vale do Paraíba e no sul de Minas Gerais estava em seu apogeu. No noroeste do município de Valença (em verde) a bacia do Rio Negro era uma importante região produtora onde duas freguesias recém criadas se destacavam (assinaladas em vermelho no mapa). No lado mineiro, a Freguesia de Santa Rita do Jacutinga foi criada em 1859 no município de Rio Preto, às margens do rio Bananal um afluente do Rio Preto. No lado fluminense, a freguesia de Santa Isabel do Rio Preto foi criada em 1851 no município de Valença [1].


Fig. 1 – Trajeto da estrada Presidente Pedreira sobre mapa de 1868

Parte I (1868 – 1886) A Ponte do Zacharias e as estradas reais

As “estradas reais” tinham como característica serem construídas, conservadas e protegidas pelo governo central. Eram públicas, de boa qualidade e seguras, qualidades apreciadas pelo agentes do transporte e do comércio. Em contrapartida, permitia ao governo fiscalizar o tráfego, evitar o contrabando e cobrar impostos.

O governo provincial do RJ aprovou em 1850 a construção de uma estrada que facilitasse o trânsito das mercadorias da região à Corte. Ela recebeu o nome de Presidente Pedreira e seu traçado partia da Pavuna, o porto fluminense da baía de Guanabara mais próximo à corte e seguia pelo traçado em azul (Fig.1). Subindo a serra, atravessava Valença e atingia Santa Isabel de onde cruzava o rio Preto até Santa Rita em Minas. A estrada conserva ainda hoje esse nome em alguns trechos e constitui parte do traçado da atual rodovia RJ-137 [2].

O crescente tráfego dos tropeiros trouxe progresso à região motivando o governo em novembro de 1861 a criar, no local de travessia do rio Preto, o Registro do Porto de Zacarias, “para conferencia das guias do café” [3].

Abaixo (Fig.2) uma visão aérea que permite visualização do local conhecido primeiro por Porto, depois Ponte do Zacharias, rota de ligação entre os estados com suas estradas e ferrovias. O local da ponte primitiva está assinalado em azul e o da ponte ferroviária mais tarde transformada em rodoviária indicada em vermelho.

Fig. 2 – Ponte do Zacarias sobre o Rio Preto (anotações do autor sobre Google Maps). No canto superior direito nota-se o final da antiga estrada em direção à ponte.

O “porto” do título indica a inexistência de ponte no local Esta só seria construída em 1868 [4] como se vê na Fig.3

Em 1872 uma nova “barreira” (sic) foi criada na agora Ponte do Zachariaspara melhor fiscalização dos produtos exportados” entre os estados [5]. O nome Zacharias remete a uma das famílias fundadoras de Santa Rita.

Fig. 3 – Em primeiro plano, a ponte atravessando o rio Preto no ainda chamado “Porto do Zacarias” (ca. 1900 – acervo Fatima Helena Oliveira Araujo e Araujo).

Fig. 4 – Imagem atual do Google Maps com  mesmo ângulo, como se pode observar pelo relevo ao fundo.  Em primeiro plano, vê-se a ponte já reconstruída em 1918.

Mais uma prova da importância do local foi a criação da agencia postal Ponte do Zacharias (MRJ 1507) em 7 de agosto de 1874 [6].

A nota não é clara sobre a província em que foi criada a agencia. O GP de 1880 a lista em MG enquanto a tabela imperial de 1885 registra um certo ‘Ponto’ do Zacharias (sic) criado em 1881, com a classificação de Freguesia (o que não faz sentido). Por outro lado, o detalhado GP de 1906 não mais a registra como agencia mas sim como Ponte do Zacarias, log – Rio de Janeiro – m. Valença – Santa Isabel do Rio Preto (sic) [7]. Como se vê, as informações são contraditórias; na dúvida, mantive-a na minha relação de agencias do Rio de Janeiro [8].


 

Parte II  (1886 – 1961) A Ponte do Zacharias e as ferrovias

O progresso significava então estar conectado à rede ferroviária. Assim, em 1875 o governo concedeu autorização para construção da EF Santa Isabel do Rio Preto sendo seus estatutos aprovados em 1879 [11]. Partia de Barra do Piraí, importante entroncamento viário servido pela E F D. Pedro II, onde dispunha de plataforma própria um pouco adiante da estação principal.

Em 1881 era entregue o primeiro trecho até Paulo de Almeida, passando por Ipiabas. Em 22 de novembro de 1883, com a presença do Imperador, a linha foi inaugurada até Conservatória. A estação terminal em Santa Isabel do Rio Preto foi aberta em 6 de abril de 1886 com o nome de Joaquim Mattoso.

Um fato relevante é publicado em 21 de setembro de 1889 comunicando a venda da linha de Santa Isabel para a Companhia E F do Sapucahy “que assumirá o tráfego” a partir de outubro. Essa companhia havia sido criada em 1888 em Minas e tinha ambiciosos projetos de expansão. Para tanto, formou-se a VRF – Viação Ferrea Sapucahy em 12 de fevereiro de 1891 [13]. Após essas importantes modificações no controle acionário, o primeiro passo foi a decisão de prolongar a linha de Santa Isabel até Santa Rita do Jacutinga (MG), onde se entroncaria com a EF Sapucahy que vinha do interior de Minas. Para isso era necessário construir uma ponte sobre o rio Preto.

Sobre esse tema, matéria de 1892 na Gazeta de Noticias nos informa que “foi acabada a formação do leito da linha até a ponte do Zacharias estando também terminada a alvenaria e superestrutura de ferro da Ponte sobre o rio S. Fernando em Santa Isabel (…) Os pegões da ponte do Rio Preto foram acabados (…) para a colocação da “superestrutura de ferro” [9]  De fato, a Fig.5 a mostra ao fundo (assinalada em vermelho), exatamente como descrita. Acrescento logo abaixo uma imagem atual, em ângulo aproximado.

P.S. o rio S. Fernando era o rio em cujas margens se desenvolveu a Freguesia de Santa Isabel.

A extensão da linha foi concluída em 1892 [14] e a estação de Santa Rita do Jacutinga já estava em operação em 15 de abril de 1893, pois constava na publicação da tabela de horários da ferrovia [15].

Fig. 5 – Mesma imagem da Fig.3,  mas agora com foco na imagem da ponte ferroviária em segundo plano no alto à esquerda. Marcada em vermelho pelo autor.

Fig. 6 – Nessa imagem atual do Google Maps, é possível ver as duas pontes em outro ângulo. Marcação do autor mostra a original em azul e a ferroviária em vermelho à esquerda.

Um novo capítulo aparece em nota na imprensa em 1917 informando que “estão publicados editaes de concorrência para a construção da ponte Zacharias sobre o rio Preto, no município de mesmo nome”. Seria outra ponte? Uma explicação aparece em 1918 no relatório do presidente do estado do Rio que diz em um trecho: “…a ponte do Zacharias, recentemente reconstruída por aquelle estado (MG)…[10]”  Ou seja, reconstruída a ponte “velha” de 1868. Suponho que esta seja a de cimento que aparece na Fig.4 apresentada acima.

 


Parte III  (1961 – hoje)  A Ponte do Zacharias e as rodovias

Com a desativação das linhas ferroviárias nos anos 1960, houve investimento na rede rodoviária e parte do leito das ferrovias converteu-se em leito de estradas de rodagem. Foi o caso da ponte ferroviária de Zacarias. A estrutura de treliça de aço foi reaproveitada como apoio para o leito de concreto da rodovia ERJ-153 / MG-457. A Fig.7 mostra a obra de engenharia que perpetua o nome Ponte de Zacarias.

Fig. 7 – A imagem atual permite ver a estrutura de concreto da rodovia apoiada sobre a treliça metálica original da antiga ponte ferroviária (acervo de Fatima Helena Oliveira Araujo e Araujo)

 A ponte original reconstruída continua lá (Fig.8). Serve para o trânsito local e ainda aponta para a direção da antiga Estrada do Presidente que não existe mais.

Fig. 8 – A Ponte original


Parte IV – A agencia postal de Santa Isabel do Rio Preto

A agencia postal de Santa Isabel é a segunda citada neste artigo, relembrando que a primeira foi a da Ponte de Zacharias. Ela foi criada em 4 de maio de 1854, bem antes da chegada da ferrovia que como vimos acima, foi inaugurada em 1886.

No entanto parece ter sido construída longe da agencia pois há uma licitação de linha de malas entre a estação e a agencia para o ano de 1889. Temos várias perguntas. Por que um nome diferente da localidade? Por que uma linha de mala? A questão está detalhada na nota [12].

O mapa da Fig.8 não indica nenhum impedimento para que a estação fosse construída no centro da localidade, onde aliás está atualmente. Por exemplo, como vimos anteriormente, a transposição do rio S. Fernando só aconteceu em 1892 quando a ferrovia foi prolongada até Santa Rita.

A estação só seria renomeada Santa Isabel do Rio Preto em 20.1.1935 pela E F Central do Brasil [17].

Fig.8 Um mapa atual com o traçado da ferrovia não ajuda a entender o porquê da necessidade de um condutor de malas entre a estação e a agencia (fonte: wikimapia com detalhes do autor).


Anexo I – Como evoluíram as ferrovias citadas

Na mesma época, a VRF adquiriu também a EF Piraiense (ou EF de Santana, que unia Barra do Pirai a Passa Tres passando por Pirai –  Linha 12 em Correio Ferroviario). As duas ferrovias seriam interligadas com a construção do trecho Barra do Pirahy -Sant’Anna (E F Pirahy ou E F Sant’Anna) com a permissão em 6/4/1891 do uso de faixa paralela à EFCB. Mais tarde a linha de Santa Rita a Passa-Tres será conhecida por Linha da Barra. O projeto de prolongamento dessa estrada até o litoral foi abandonado [16].

Por sua vez, a VRF seria absorvida pela Rede Sul-Mineira em 1910 e esta, juntamente com a EF Oeste de Minas, formariam a RMV em 1931.

Todo o trecho de Barra do Pirai a Santa Rita do Jacutinga foi desativado em 1961.

Nota: há mais informações neste site sobre as Estradas de Ferro citadas. Elas podem ser encontradas no menu Correio Ferroviário. Neste, a EF Santa Isabel é a Linha 13; a EF Pirahy, Linha 12 e a RMV a Linha 16.

Notas e Informações
[1] IBGE
[2] Monografia Os caminhos antigos no território fluminense por Adriano Novaes. O nome é homenagem ao presidente da província na época, Luis Pedreira do Couto Ferraz (1848-1853).
[3] Nota no Diário do Rio de Janeiro (novembro de 1861)
[4] Nota de 24/01/1868 da Directoria geral de obras públicas da província de MG no Diario de Minas edição de 25.
[5] Nota no boletim da Sociedade Geográfica do RJ em 04/01/1872
[6] Ata da reunião da Assembleia Provincial de Minas do dia 12 de agosto publicada no Diario de Minas (edição de 25 novembro de 1874);
[7] Guia Postal de 1906 publicado em 1907 pela Diretoria Geral dos Correios no Rio de Janeiro.
[8] Vale registrar que o filatelista e pesquisador mineiro Jose Francisco de Paula Sobrinho não a registra em seu livro “História Postal de Minas Gerais“.
[9] Matéria na Gazeta de Noticias de 13/07/1892. Essa nota informa que os trilhos já chegaram ponte do Zacarias e as cabeceiras estão prontas para receber a “superestrutura de ferro” dessa ponte. Também informa ter sido “terminada a alvenaria e colocada a superestrutura de ferro” da Ponte do rio S. Fernando (em Santa Isabel).
[10] A primeira nota do parágrafo é do O Imparcial (RJ) de 12 de fevereiro de 1917: “(BELLO HORIZONTE, 11 (A.A.) Estão publicados editaes de concorrência para a construção da ponte Zacharias sobre o rio Preto, no município de mesmo nome.” A segunda nota é do O Fluminense de 17/3/1918.
[11] Aprovação dos estatutos da EF SIRP pelo Decreto 7549 de 22 de novembro de 1859 do Governo Imperial. Nota na Revista de Engenharia.
[12] A data de abertura da estação Joaquim Mattoso está na Tabela de Horários de trens publicada pela EF santa Isabel do Rio Preto que informa abertura da “estação terminal” no dia 6.4.1886 (ed. de 25.04 de O Paiz RJ). Por outro lado, o edital de condução de malas para o ano de 1889 publicado no Diario de Noticias em 10.11.1888, veja imagem.
O fato de a estação não ter o nome da cidade e ter sido licitada uma linha de malas entre a estação e a agencia levanta uma boa questão. Começando pela agência dos correios, ela foi criada em 4 de maio de 1853, portanto décadas antes da estação – dificilmente ela seria instalada longe do centro. Portanto, se há condução de malas, a estação deve ter sido construída um pouco antes da cidade, talvez por razões topográficas; a nota [9] que informa que a ponte ferroviária do rio S. Fernando que corta a cidade só aconteceria em 1892. Minhas pesquisas com pessoas locais não conseguiram elucidar a questão. Agradeço especialmente a Fátima Helena Oliveira Araújo e Araújo de Santa Rita de Jacutinga e à professora Maria Aparecida de Santa Isabel do Rio Preto que me forneceram farto material de pesquisa para este artigo.
Sobre o nome da estação: Joaquim Mattoso Duque Estrada Camara foi eleito deputado federal pelo Espírito Santo com mandato iniciando em 1886 (na época, com sede no Rio). Em abril desse ano foi ele indicado diretor do Banco Auxiliar no Rio e em fevereiro de 1891 aparece como membro do conselho fiscal da Viação Ferrea Sapucahy (que viria a adquirir a EF Santa Isabel nesse mesmo ano). Essa já é uma boa primeira pista do nome. A segunda é o nome de quem assinou a tabela de 6.4.1886 mencionada acima: José Mattoso, chefe do tráfego.
[13] Venda da ferrovia em nota da Gazeta de Noticias de 21/09/1889. A nota referente à fusão com a Viação Ferrea foi publicada na edição de 12/2/1891 do J Commercio.
[14] Nota no J Commercio em 3 de outubro de 1892.
[15] Tabela de horários da linha de Santa Isabel do Rio Preto (O Paiz em 15/04/1893).
[16] Documento de aprovação em Revista de Engenharia nº225 pg.425.
 A ligação ao litoral seria finalmente construída pela EF Oeste de Minas, no traçado de Barra Mansa a Angra dos Reis entre 1897 e 1928 (ver Linha 16 – EFOM).
[17] Comunicado da EF Central do Brasil no JB da mesma data.

 


© 2020 agenciaspostais.com.br (monografia de Paulo Novaes, em 11 de outubro de 2020)